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Conto - Nossos dias de magia e livros

Uma pequena mesa de estudos

Há na cidade de Alden uma loja de magias. Não é tão emocionante quanto o título faz parecer. Para todos os efeitos é uma loja de livros e uma biblioteca. Ou seja, lá se armazenam e catalogam diversos grimórios, estudos alquímicos, pergaminhos de magia que podem ser usados para pesquisa ou replicados por escribas e vendidos. Há também uma sessão de pergaminhos de uso único que os magos da loja preparam para serem magias executáveis que qualquer pessoa pode executar.

É divertido, meio caótico e meio monótono. Lunari é uma das pessoas que trabalha lá. Para ela não é nem de longe o trabalho perfeito, mas se cercar de livros a faz se sentir especial. Também é um pouco emocionante – pensou naquela manhã chuvosa entre as carroças na rua lamacenta – pensar que somos os responsáveis por manter a magia viva no mundo. Eu poderia estar trabalhando vendendo legumes no mercado da cidade. Ou de ajudante do ferreiro da esquina, reparando as armaduras de aventureiros estúpidos que não conseguem sequer derrotar um gigante. “Creio que isso é um pouco melhor”. Sussurrou enquanto tirava a enorme chave do bolso para abrir a loja.

O lugar era grande, abarrotado de livros, tomos e pergaminhos enrolados e catalogados em prateleiras organizadas. Lunari era a primeira a chegar porque era a primeira a fazer todas as coisas funcionarem, era a recepcionista afinal de contas. Precisava acender as velas, abrir as janelas altas, conferir se nada ficou fora do lugar e quando a assistente da limpeza chegasse, ajudar a acender a lareira ou abrir as janelas ainda mais altas caso o dia estivesse fresco para que o vento entrasse.

Pouco tempo depois delas, o restante dos funcionários chegava. Escribas, bibliotecários, restauradores, magos e a gerente e dona da loja. O lugar era enorme, com diversos setores e funcionava numa grande cidade, que abrigava um colégio de estudos arcanos, a enorme torra no centro da cidade. Então clientes eram abundantes e diversos. Todos os dias o lugar se enchia de conversas baixinhas, pessoas desesperadas, gente andando pelos corredores e conferindo prateleiras e coisas do tipo. Lunari sempre tinha que lembrar às pessoas que elas não podiam correr entre os corredores, nem levar lanches ou velas que não fossem mágicas para perto dos livros. Além de outras coisas mais repetitivas. Mas aquele era um dia que valeria um pouco mais à pena…

Uma drako entrou pela porta quase deslizando – se de fato não estava – era muito bonita, tinha os chifres adornados por correntes peroladas e douradas e uma roupa de sedas justas ao corpo que não se via em qualquer lugar. Lunari ficou embasbacada. Daviga, a assistente de limpeza corou enquanto espanava uma janela. Lunari pensou que era provavelmente uma nobre de outra cidade ou alguém tão rica que nunca saia de casa para nada, pois gente importante e tão bonita não seria esquecida por ela.

“Com sua licença, necessito de uma cópia do tomo Das magias de Amor e outros Sofrimentos, de Calov Sancri. Minhas amas me informaram que eu poderia encontrar uma cópia à venda ou solicitar uma neste estabelecimento.”

Lunari precisou piscar umas três vezes antes de conseguir responder.

“Sim!! Sim, creio que temos.” disse folheando as páginas de um grande livro de registro de tomos. “Mas eu acho que é uma versão muito antiga que se encontra na sessão de raridades. A senhora pode consultar apenas com um guia ou solicitar que um escriba transcreva o tomo para a senhora, não é um volume grande… er… milady… excelência?

“Oh, pode se adereçar a mim como aram, aram Voissle. Creio que seja estranho, mas ainda uso os pronomes de tratamento drako. Por obséquio, solicite aos seus escribas uma cópia do tomo. Irei esperar por aqui mesmo.” disse olhando os arredores.

Daviga corou ainda mais e estava parada ainda limpando o mesmo canto da janela.

“Claro, aram Voissle! Hm, eu posso separar uma sala de estudos, para seu conforto. Os escribas demoram um tempo para fazer as cópias. Eu posso selecionar outros livros com magias de amor, apaixonites ou… Ou eu posso só levar em sua residência mais tarde!”

“Este estabelecimento faz entregas?”

“Eu faço! Eu..hm... posso fazer!!” disse Daviga num tom meio assustado e receoso.

“Nós não fazemos entregas, Daviga!” disse uma voz densa e ao mesmo tempo doce, vinda de um dos corredores. Carolan era a gerente do lugar e era bem estrita sobre as regras e serviços da loja. E além de tudo era também uma drako, tendo pouco respeito ou medo de seus iguais, apesar de saber todas as tradições e etiquetas da nobreza.

“Mas... Lunari pode te encaminhar para uma sala onde você pode ter privacidade e esperar tranquilamente e podemos realmente levar outros livros para seus interesses, amorosos sobre a magia.” A fala tinha um tom de desdém.

“Obrigada aram….” respondeu a drako mais nova.

“Bibliotecária. Me chame só de Bibliotecária.”

“Bom, meus mais profundos agradecimentos, minha cara Bibliotecária.” disse depois se virando para Lunari. “Eu ficaria satisfeita com alguns livros sobre profecias e visões do futuro, querida. E uma de suas salas de estudo. Desde que eu saia daqui antes do crepúsculo com a minha cópia.”


Enquanto Carolan chegava perto do balcão principal, Lunari conduziu a Drako até uma sala de estudos, que nada mais era do que uma poltrona e uma mesa, cercadas por painéis simples de madeira, para manter a privacidade e quietude para os estudantes mais focados. E deixou a drako por lá, enquanto solicitava a cópia do tomo para um escriba e já corria para um dos bibliotecários assistentes pedindo alguns volumes de livros que sabia que estudantes de adivinhações sempre pegavam para pesquisar. E logo foi voltando e correndo para seu posto na recepção. Não era ela que deveria fazer essas coisas, mas nesse dia pareceu que era melhor fazer tudo o mais rápido o possível.

Quando voltou a sua bancada Carolan ainda estava lá encostada. E Daviga ainda parecia estar congelada no mesmo lugar.

“Respira, Daviga, vai ficar muito na cara desse jeito.” disse rindo.

“Ela deve ser mais uma dessas descendentes de alguma adivinha, gente que lê o futuro ou qualquer porcaria assim...
"Daviga! Se mexe! As mesas do salão precisam ser limpas também! Essa janela vai desaparecer se você limpar mais um pouco...”

Apesar da fala firme, o tom de Carolan suavizou muito falando com Daviga. Seu temperamento geral era ótimo com os funcionários e aprendizes. Mas suas interações com a nobreza drako eram de arrancar olhares espantados. Lunari, que sabia das duas facetas da chefe e ria um pouco.

“Será que eu devo levar um chá para ela?”

“Nós não servimos chás aqui, Lunari!” – pronto, voltou o tom de impaciência.

“E-eu posso levar o meu chá pra ela, eu trouxe para o meu horário de almoço, posso esquentar e…”

“Só se você quiser muito agradar ela, Daviga. – Disse com um sorriso malicioso – Se você realmente gostou muito dela eu te deixo fazer isso.

“Larga de implicar com ela Carolan! Vai lá Daviga, leva sim, tem aquelas xícaras bonitas na sala da Carolan. Pode pegar, por minha conta.”

Enquanto Daviga saiu feliz pelos corredores Lunari olhou para Carolan, – “Nem pense em me demitir por isso, só eu sei todos os setores dessa loja e sou sua funcionária mais antiga. Se fizer isso você que vai se ferrar…”

“Só por isso.” disse a bibliotecária rindo mais uma vez. “E porque alguém tem que desencantar a estante que começou a estraçalhar livros mais uma vez. Você devia tirar aquele exemplar de Coisas que Mordem daquela estante. Levar pra uma gaiola separada ou qualquer coisa assim.”

Lunari suspirou. Era a terceira vez naquela semana. Em algum momento ela ia achar a criatura tonta que estava recitando em voz alta aquela porcaria de livro e transformar ela num trasgo menor. Mas pensou em deixar para outro dia, pois naquele dia ela sair pra beber com o escriba mais novo no final do expediente para fofocar e reclamar do trabalho da semana. 

Assim e ela não via a hora daquele dia acabar e ela finalmente trancar a porta novamente. E quando finalmente pôde, sentiu enorme alegria no som surdo  que o salão fez assim que ela virou a chave. Encerrando assim, toda a magia do lugar.

***

“Olá? Ainda tem alguém aí? Senhora Bibliotecária??” disse a voz pomposa vindo do cubículo de estudos cuja vela perpétua tinha acabado de apagar. “Vocês já terminaram minha cópia? Eu não queria incomodar, mas creio que está tarde…” 

Quando Voissle abriu sozinha a porta do cubículo, toda a biblioteca estava silenciosa e mais nenhuma vela se encontrava acesa. Mas ela provavelmente seria encontrada por Lunari na outra manhã.