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Desencontros & Pó de Trasgo | Conto fantasia urbana

O vento soprava forte naquele dia frio de julho. Cami voltava do trabalho mais cedo por causa de um reparo na rede de energia do bairro. Ela não gostava de passar durante o dia na praça das águas. Mas não eram os trolls comerciantes gritando, o vento gelado, as babás que não olhavam as crianças-diabretes ou a água espirrando pra todos os lados que a incomodavam. E sim o homem de boné que entregava algo pequeno a um ogro adolescente num banco mais afastado. Ela sabia que o que era. Havia visto um amigo ser o receptor do pacote e se dar muito mal.

Cami remoeu lembranças do passado, onde ela e o jovem ogro Muriel matavam aula numa sexta feira para comer doces e conversar. Eles se conheciam desde a infância, pois eram vizinhos, mas a família de Muriel passava por mais dificuldades, uma vez que o pai havia falecido cedo e a mãe deixou a casa quando o mais velho tinha apenas dezessete anos. Mas aquele parecia ser um dia bom, onde Muriel podia ser apenas um adolescente inconsequente, então passaram horas conversando de mãos dadas.

No final da tarde Muriel falou que precisava passar em um lugar e mandou Cami esperar num banco da praça. Cami assistiu curiosa enquanto Muriel entregava algo a uma fada mais velha. Foi aí que toda cena mudou muito rápido, três policiais humanos interceptaram o jovem e já começavam a algemá-lo enquanto a fada saía correndo com o pacote. Cami correu na direção de Muriel para ajudar, mas o grito desesperado do jovem ogro a parou. O urro que dizia “vai embora daqui!” há plenos pulmões foi o suficiente para lhe assustar.
Só dias depois que Cami soube que Muriel foi preso por tráfico de Pó de Trasgo e que seria detido por pelo menos 5 anos, ainda que a quantidade que ele portava era irrisória e todo o processo foi muito injusto. Mas a apreensão do garoto foi um marco na batalha contra o pó alucinógeno produzido com o chifre de trasgos que tomava a cidade, e Muriel não teve saída. Perderia sua juventude numa detenção juvenil.

Cami tentou visitá-lo na detenção por meses a fio, mas ele não aceitava suas visitas. Seus recados só diziam pra ela não voltar mais. E logo a família mudou de casa. Muriel, preso, sentia um misto de vergonha e solidão.

Com o tempo ela desistiu do seu primeiro amor e seguiu sua vida. Começou a trabalhar como recepcionista num enorme prédio de comerciantes fadas e levava uma vida pacata. Ela não era excepcional, era apenas uma humana comum, com uma vida mediana. E naquele dia frio, apesar das fadas andarem pra todos os lados ocupadas com suas tarefas, Cami apenas queria chegar em casa e desfrutar um bom e quente elixir azul, uma bebida alcoólica feita com frutas, leite e açúcar feérico.

Apesar de sempre se manter longe de problemas, resolveu interromper o homem de boné que entregou o pacote ao adolescente.

— O senhor não tem vergonha de fazer um jovem entregar drogas!? — disse com amargura e raiva na voz.
O homem de boné olhava pra baixo, contemplando os diabretes que andavam na grama da praça. Quando olhou pra cima, revelando a orelha pontuda e a pele cinza Cami levou um susto ao reconhecer um Muriel adulto e já com linhas de destino brilhando no rosto.
— Eu agradeço por assumir que eu sou um traficante, mas eu só estava entregando a ele o meu salário.
— Eu-eu, me desculpa. Eu achei que… — Cami tropeçou em lembranças e palavras enquanto corava — Eu confundi. Me desculpe.
— Você não é a primeira...

Enquanto Muriel se ajeitava para se levantar Cami respirou fundo, afastou os cachos volumosos do rosto e o parou.
— Eu posso saber seu nome? Você lembra muito um amigo meu. Desculpa se eu estou sendo uma idiota….Eu… Desculpa.
O ogro tirou o boné, revelando o cabelo grosso e escuro que lhe caía pela testa. Ele franziu a sobrancelha para poder olhar a mulher contra o sol. Muriel também reconheceu Cami, ainda que sua fisionomia tivesse mudado muito. O rosto da jovem mulher ainda tinha os mesmos traços. Ele suspirou, mas logo endureceu o rosto.
— Desculpa te decepcionar, Cami, mas eu não tava entregando drogas dessa vez. Aquele era o Ariel, ele tava pegando meu salário pra levar pra casa. Eu não tava afim de ir lá hoje.

Muriel ajeitou a mochila nas costas e ia se distanciar, mas sentiu as mãos dela puxando sua blusa. A voz de Cami saiu vacilando, tropeçando em lágrimas.
— Não vai embora Muriel, por favor. Eu-eu vi o garoto e lembrei de quando você foi pego. Eu não queria ver aquilo de novo. Mas eu tô feliz em te ver. Muito feliz.

O jovem ogro relaxou os ombros e sentou de volta no banco, com um olhar envergonhado.
— Você terminou a escola? Faz tempo que não te vejo.
— Terminei, fiz uns treinamentos e fui trabalhar no centro comercial das fadas. Aqui perto. Num prédio cheio de plantas na fachada.
— Hm.
— Você tá trabalhando por aqui?
— Tava. Me despediram ontem. — disse Muriel com raiva na voz. — trabalhava numa loja de celulares. Mas o dono era um babaca. Sai depois de brigar com ele.

Cami ficou sem graça e triste por algum momento, mas de repente lembrou de uma vaga de trabalho que tinha visto. O que deixou seu rosto animado e bonito, hipnotizando Muriel por um momento.
— Há! A lanchonete do meu prédio tá contratando. Aposto que te chamam pra trabalhar lá. E eu vou poder te ver todo dia! E…
As orelhas de Cami arderam de vergonha. Muriel se divertiu vendo novamente as orelhas vermelhas de vergonha dela. Ainda que fosse muito diferente da memória de ver sua namoradinha de colégio ficando sem graça. Assim, Muriel testou segurar a mão dela mais uma vez e ver se ela ficava mais vermelha.
— É bom te ver, Cami. Não era o que eu queria, justo hoje. Mas acho que era o que eu precisava.

O rosto de Cami esquentou e retorceu. Mas ela nem tentou se segurar e logo pulou nos braços de Muriel, aproveitando o calor característico de um ogro.

O mês passou muito rápido, e logo o frio terminou de ir embora. Cami ia pro trabalho todos os dias junto de Muriel. E eles almoçavam rindo e lembrando de coisas da infância. Eles ficaram juntos e aproveitaram os meses num relacionamento leve e descomprometido, mas Muriel se recusava a entrar na casa dela e passar a noite. Trocavam carinho e beijos na calçada da casa dela. Como dois jovens namorados. Mas não demorou muito até Muriel ser despedido. A dona da lanchonete disse que era por causa da economia.

Muriel se sentiu cansado de lutar. Ficou amargo e sumiu por uns dias. Todas as tentativas de Cami de ligar para ele deram em nada. A chamada era recusada todas as vezes.

Cami até estranhou quando sua campainha tocou naquela noite. Quando ela atendeu a porta Muriel abraçou ela com força, fazendo com que ela andasse vários passos pra trás.
— Eu vim aqui porque eu não queria fazer isso de novo. Mas se eu não visse você eu ia acabar cedendo.
Com a mesma atitude tempestuosa com que chegou Muriel sentou no sofá e jogou a mochila em cima da mesa de centro. A casa ainda estava do mesmo jeito que os pais de Cami tinham deixado. Muriel abriu a mochila e mostrou o conteúdo a Cami. Três pacotes de Pó de Trasgo brilhavam em verde neon no escuro da mochila.

— Eu ia entregar isso numa mansão e ganhar o suficiente pra sustentar a casa esse mês. A minha irmã mais velha, a Kanen vai ter um filho com uma fada. Eu precisava da grana pra ajudar elas. Mas eu não quero. No fundo não quero.
— Muriel… Tem algo que eu posso ajudar? Eu também não quero que você vá pra esse lado e eu posso...

Muriel fechou a mochila correndo, parecendo se arrepender um pouco.
— Eu só vim me despedir. Eu vou devolver isso e vou trabalhar nas docas. Um amigo disse que algo surgiria em alguns dias. Uma dessas expedições de pesca que duram um ano. Mas eu tava desesperado.

Cami tentou responder a irritabilidade de Muriel com uma tentativa de abraço. Ela queria apoiar ele e se mostrar disponível. Mas foi recusada.

— Eu vou com ele. Só vim me despedir e te ver, pra ter certeza de que eu não faria besteira. Obrigada. Obrigada por esses dias e por fingir que eu não era um cara ruim. Mas pode seguir com a sua vida.
— Muriel.. Não! Eu nunca pensei em você como um cara ruim. Nunca. Você não precisar ir e… — mas antes que Cami pudesse concluir sua fala Muriel foi se levantando.

Ele respondeu dizendo que não poderia ficar e que ela não precisava se preocupar, que ele não ia fazer nada ruim por desespero. Mas que também não iria voltar pra vida dela. E partiu fechando a porta num estrondo. Cami não dormiu naquela noite, de tanta agonia e tristeza.
No outro dia foi procurar Muriel em casa, mas ele realmente tinha arrumado as coisas e saído de casa. Se despediu de Ariel, Kanen e o irmão mais velho, Doriel, e disse que não voltaria em um ano, mas que ia mandar dinheiro pelo banco.

Cami continuou ligando no telefone dele enquanto superava tudo que tinha acontecido. Mais de um ano e meio passou enquanto ela curava o próprio coração. Assim, era verão quando era seguia para um restaurante de cozidos de peixe com um colega de trabalho.

A fada de pele vermelha e olhos amarelos falava animadamente sobre o andamento do time comercial da empresa e de como ele ia bem em tudo. Mas logo seu falatório parou quando ele esbarrou num homem corpulento e alto de pele cinza. Ela olhou distraída pro rosto quadrado que derrubou o colega como se ele fosse uma pluma.
— Desculpa, cara. Eu tô com pressa! — disse o ogro seguindo seu curso, passando rapidamente pelos dois.

Cami não podia acreditar em seus ouvidos, e sem demora puxou a jaqueta do ogro. O rosto estava cansado e a meia lua brilhante em sua testa estava cortada por uma cicatriz grande. Mas mais uma vez o destino colocava Muriel em sua frente.
As orelhas de Cami coraram.

[Fim da primeira parte.]