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Marionete | Horror

— É, eu sei que é o terceiro chamado na área. Eu sei que não deveria mais ser nossa responsabilidade, mas não fui eu quem decidi te chamar. Foram ordens. Agora vem pra cá.
Gina fecha o aplicativo por onde deixou a mensagem de voz e trava a tela. A vontade era jogar o objeto na cara de Tomás, mas ele não estava por perto pra isso.
Era assustador ter que ir fazer a ronda em um parque abandonado. Todos aqueles filmes com palhaços e parques bizarros deixavam sua nuca arrepiada a cada vez que tinha um chamado na área. Como qualquer lugar abandonado o parquinho acabava sendo alvo de viciados ou de adolescentes arruaceiros. Os vizinhos sempre tinham algum barulho para reclamar. Ninguém mais queria ir lá, porque era perda de tempo.

Gina não sabia porque tinha resolvido aceitar o chamado. Era verdade que a vizinha parecia desesperada quando ligou. Era verdade também que o telefonista ficou preocupado com a velha. Mas também era verdade que houveram vários desses chamados não dando em nada. O lugar era bizarro, alguns brinquedos acendiam do nada por causa de caixas de energia enferrujadas e coisas do tipo. Era fácil a imaginação das pessoas ficar fértil. 

Gina vasculhou os cantos onde as pessoas costumavam se esconder. Não demorou muito para ouvir um barulho estranho perto de uma cabine de ingressos. Ela diminuiu o passo. Apontou a lanterna e colocou a mão no coldre com a arma de munição de borracha. Mais uns passos a frente, contornou a cabine e apurou os ouvidos para uma respiração estranha, rítmica. A lanterna revelou um emaranhado de pessoas se beijando. A policial respirou com tédio. 

 — Era só o que me faltava né? O casalzinho não tem um lugar melhorzinho pra ir não? Tão achando que parque abandonado é motel, meus chuchus?

O casal ficou sem graça, pediram desculpas e saíram correndo e rindo pela passagem principal. Gina deu uma baforada. Ela nunca ia entender essas coisas de casal, muito menos esse tipo de programa nada a ver, mas já estava na polícia há muito tempo. Essas ocorrências não eram incomuns. Deu mais uma checada com a lanterna e seguiu o caminho principal também.

Chegando na viatura ligou para a central.
 — Richard, pode falar pro Tomás que não precisa vir, era só um casal se beijando. 

 — Oi Gina, ele já saiu desde que ouviu sua mensagem ele não chegou aí?

Gina olhou em volta, teve de ligar o farol do carro para enxergar na rua escura. Viu a moto de Tomás estacionada perto de um poste de luz queimado.
O capacete repousava no guidão da moto. No terreno não havia uma movimentação sequer. Ela não sabia dizer se Tomás tinha entrado no terreno, mas sabia que algo não estava certo. Ela podia sentir o vento gelado e sinistro que a empurrava para o parque. Ia chamar reforços e desistir, até que um grande letreiro se iluminou no fundo do parque. 

Sem saber se era coincidência ou prova da movimentação de Tomás pelo parque Gina resolveu investigar. Lanterna em punho. Voltou.

O parque mais iluminado era um pouco menos medonho, as sombras ficavam menores e menos difusas. O medo daquilo que se escondia passava mais rápido. Gina ganhava mais confiança à medida que andava em direção ao letreiro. O mesmo apontava para uma pequena tenda onde apresentações aconteciam. Um cheiro pungente de mofo e alimento podre chamou atenção enquanto ela passava por um carrinho de comida. Preferiu não olhar e fitou o chão. Ouviu um barulho para além do carrinho. Seguiu seu ouvido. O chão marcava passos que se arrastaram em direção a uma caixa de energia. Ela olhou para o poste por onde a energia fazia o som de zumbido. Era uma caixa de energia com a tampa aberta. Ela atentou para algumas das chaves levantadas. A tampa mostrava que a mão errou e riscou várias vezes a frente antes de acertar o buraco da chave. Minimamente curioso para a investigadora.

Resolveu voltar para o letreiro. Passou pela tenda grossa. O interior não tinha as luzes acesas. Ela apontou a lanterna ao longe para tentar enxergar.

 — Tomás?
Nenhuma resposta. 

 — Inspetor Dias...? Alguém? Pode aparecer. Eu sei que você acendeu as luzes.
O próximo estalo alto acendeu os canhões de luz na direção do pequeno palco. Tomás estava no centro. Seu corpo, meio de pé meio caído, tinha as pernas alinhadas de forma estranha. Ele parecia amarrado a alguma coisa.

Gina continuou a chamá-lo pelo nome enquanto se aproximava. Não obteve resposta alguma. Quando chegou perto notou que ele parecia em choque. Os olhos estavam alarmados. O suor escorria pelas costeletas do homem. Ele parecia respirar, mas apesar do estado de alarme do rosto ele respirava de forma rasa e calma. Ela tentou sacudir e o chamar de novo. Colocou de volta a mão na arma. Estranhamente o corpo do homem parecia preso em alguma coisa. Os braços estavam pendurados rígidos nas mãos, mas ainda moles nas articulações. O mesmo para as pernas. Com um pequeno susto ela percebeu que o olho dele havia se mexido. Antes vidrado para a frente, agora parecia tentar atravessar o lado direito da sua cabeça. Ela aceitou a dica para olhar a parte de trás da cabeça dele. Ver se não havia realmente nada o prendendo.

Foi quando ela o viu de costas que sentiu. Um sopro doentio parecia vir de cima de sua cabeça. O ar descia por seu corpo como água, caindo gota a gota. Pareceu durar vários minutos sem ela poder se mover. Um puxão. Agressivo, dolorido. Seu corpo se suspendeu no ar, formando uma estrela com os membros esticados. Sua boca também se abriu sem produzir som. Um calafrio não parava de descer a espinha. E podia sentir a dor dos braços e pernas sendo esticados. Ela estava consciente, conseguia sentir seu estômago revirando, mas perdera o controle do corpo.

Tentou olhar, mas as cordas eram invisíveis. Tentou fazer força contra e apenas doeu mais. Ela continuava a subir no ar a cada esticada. A imagem de Tomás ficando difusa. E então ouviu. 

 — Não vamos estragar a noite de hoje, certo? Vingança ainda deve existir. Você pode ajudar também. Eu gosto de ter marionetes reserva. Vai acelerar as coisas, mas você precisa colaborar. 

A voz ecoava, de alguma forma, de dentro da cabeça dela. Era melodiosa. Parecia vir acompanhada de tratamento de som e fazia com que as ‘cordas’ em seu pulso apertassem cada vez mais. Ela devia estar há cinco metros do chão agora. Podia ver o chão e o auditório todo. E então despencou.

Foi um segundo. O corpo não teve tempo de reagir à queda. O estalo em seus joelhos fizeram a dor irradiar por todo o corpo. Ela sentiu as lágrimas se formando e embaçando sua visão, mas não conseguia sequer fechar os olhos. Ela entendeu o porquê das pernas de Tomás estarem em ângulos estranhos. E o fato de que aquilo realmente aconteceu de verdade, com os dois se espasmou por seu corpo junto com a dor. Ela tentou racionalizar, mas antes que pudesse pensar em cabos e truques, Tomás se moveu.

Ele andava devagar, robótico, duro. Não natural. Gina podia ouvir o som doentio de pequenos claques de madeira em seu ouvido. Ela parecia estar sendo impelida também, mas se recusava a se mover. Os pés de Tomás pendiam do tornozelo ele andava os arrastando. Ele fez uma mesura com um chapéu imaginário na direção do auditório. O som que saiu em seguida de sua voz foi também monótono e sem vida.

— Atenção, senhoras e senhores. No show de hoje nossos ajudantes irão mostrar o que é preciso para destruírem a vida dos outros.

Ele continuou ainda em um mono tom. — Com vocês, os voluntários da noite! 

As luzes se viraram para a platéia, onde o casal que Gina abordou esperava com o corpo amarrado em cordas grossas. As mãos de Gina aplaudiram vigorosamente. Contra sua vontade. 

 — Esses brilhantes jovens vão nos ajudar no show mais importante da noite! — outra rodada de aplausos de Gina.

O corpo de Tomás prosseguiu pegando os dois jovens pelas cordas que amarravam seus braços. Ele jogou o homem na direção de Gina e ficou com a moça. A mão levantou uma mesura mais uma vez. 

 — Com vocês a contorcionista!

Ele prosseguiu soltando as cordas. Gina usava toda sua concentração para impedir mais uma rodada de palmas, mas um sorriso estampou seu rosto involuntariamente.

Tomás, ainda com movimentos débeis, movimentou os braços da mulher, puxou eles pelas costas e começava a apertar. Ela gritava e tentava se desvencilhar. O namorado desesperado gritava junto, pedindo desculpas enquanto chorava. A cada grito Tomás abria mais o sorriso e apertava mais os braços da moça. O namorado olhou pra Gina e suplicou

 — Moça. Policial. Desculpa, a Carla não fez nada, eu que chamei ela pra vir aqui. Achei que ia ser divertido, eu sou um babaca. Eles falavam de histórias mal assombradas no parque e eu que sou um idiota achei engraçado. Moça solta ela, ela não fez nada. A gente nunca mais volta aqui. — ele prosseguiu a chorar e gritar tentando soltar a mão do nó.

Gina sentia seu corpo sendo impulsionado. Sentiu seus braços se mexendo. Sentiu vontade de esganá-lo. Ao mesmo tempo sabia que não era ela. Sabia que essa não era sua vontade, mas sim uma força externa. Ela respirou tão fundo quanto o corpo permitia, usou toda sua força para fechar os olhos. 

Decidiu que não ia ser ferramenta. Que não havia ser ou coisa capaz de decidir por ela. E ainda que seu joelho doesse horrores, decidiu que sairia dali. 

Começou a puxar os braços e as pernas, tentando recobrar o controle deles. A dor do joelho machucado serviu para algo. Ela gritou a dor com todas suas forças e com isso seu corpo inteiro caiu. Ela parecia livre. Ela se sentia livre.

Correu, pegou uma cadeira de metal da arquibancada e acertou Tomás. O som de cordas arrebentando pôde ser ouvido lentamente. Tomás caiu no chão e começou a gemer. Pouco depois apagou. Gina alcançou o celular e foi na direção da moça para lhe soltar as mãos.

 — Alô? Richard, manda reforços e duas ambulâncias pro parque, rápido. Depois eu explico.

De volta em casa, com um dos pés imobilizados, Gina faz questão de pegar o notebook e pesquisar. Não foi necessário muito para saber, um jovem casal havia se machucado no parque anos atrás. Um tropeço num espeque que prendia a lona estava fora de lugar. Eles processaram o parque por causa do incidente e motivaram toda uma onda de denúncias sobre as condições do parque. Elas eram de fato graves, motivando o cancelamento do alvará do local. No final do artigo havia algo sobre o sumiço do responsável pelo parque. O incidente havia sido durante seu show de marionetes. Gina voltou para o terreno quando seu pé melhorou. Acendeu um isqueiro e jogou dentro da lona.

O som de claque de madeiras se movendo povoou seus sonhos por dias. Mas ela sabia que ficaria bem.

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Notas da Autora:
A ironia sou eu escrevendo esse texto depois de ter virado os pés hoje. Morrendo de dor. Mas eu juro que decidi ele antes de machucar.
Ó! A ironia da vida. hahaha
Texto Originalmente postado no Medium.